A Graça e a Lei
por
J. I. Packer
Escreveu o apóstolo João: “Porque a lei foi dada por intermédio de Moisés; a graça e a verdade vieram por meio de Jesus Cristo” (João 1:17). Na economia de Deus, a lei foi exposta em primeiro lugar e a graça posteriormente. O Antigo Testamento é dominado pela grande realidade da lei de Deus, tal como o Novo Testamento é dominado pela graça de Deus. Porém, como relacionar a graça com a lei, visto que a lei veio antes da graça? O Novo Testamento revela dois pontos de vista que erram quanto a isso, a saber: o legalismo e o antinomianismo.
O legalismo (abordado em Romanos 4 e 9-11; Gálatas 2-5 e Colossenses 2) fruta a graça divina, por buscar a retidão mediante a religiosidade e as obras da lei, encarando-as como parte do fundamento de nossa aceitação diante de Deus, justamente com os méritos de Cristo. Paulo, todavia, insistia contra isso, dizendo que a fé em Cristo para a salvação é uma confiança exclusiva, de tal modo que uma professa confiança em Cristo que não exclua totalmente a autoconfiança não é fé real, aos olhos de Deus. Por esta causa veio a advertência pauliana aos gálatas judaizantes, os quais achavam que precisavam suplementar a sua fé em Cristo com o ato de serem circuncidados: “De Cristo vos desligastes, vós que procurais justificar-vos na lei, da graça decaístes” (Gálatas 5:4). A observância da lei não desempenha qualquer papel na justificação. Esta se realiza exclusivamente pela fé, pois acha-se somente em Cristo e através dEle, e é somente pela graça. Confiar nas próprias obras, juntamente com a obra de Cristo, desonra-O, frustra a graça e priva a pessoa da vida eterna (cf. Gálatas 2:21 e 5:2).
No outro extremo o antinomianismo (abordado em Romanos 6; 2Pedro 2 e 1João) erra por transformar “em libertinagem a graça de nosso Deus” (Judas 4). Enquanto o legalista exalta de tal modo a lei que chega a excluir a graça, o antinomiano é fascinado pela graça ao ponto de perder de vista a lei, como uma regra de vida. Ele argumenta que, visto que os crentes estão “libertados da lei” (Romanos 7:6) e não debaixo da lei, e, sim, da graça (Romanos 6:15), com o perdão eterno já em sua possessão, não mais importa que tipo de vida eles levem. Embora o legalismo e o antinomianismo, segundo certo ponto de vista, sejam pólos opostos de erro, há, na teologia, e freqüentemente na experiência, um elo de ligação entre eles: ambos procedem da mesma fala suposição de que o único propósito da observância da lei é obter justiça diante de Deus. Assim sendo, o legalista ocupa-se em estabelecer sua própria justiça, ao passo que o antinomiano, regozijando-se no dom gratuito da justificação pela fé, não vê razão alguma para guardar a lei. Muitos dos antinomianos, na história, têm saído do legalismo por reação ao mesmo. Ambos os erros, porém, são respondidos assim que percebemos que a lei moral expressa a vontade de Deus para o homem em sua condição de homem. Jamais teve a finalidade de servir como um método de salvação (e, de qualquer forma, é inútil para esse propósito). A lei foi dada para guiar os homens na vida de piedade. E a graça, ao mesmo tempo que condena a justiça própria, estabelece a lei como regra de conduta. Escreveu Paulo: “Porquanto a graça de Deus se manifestou salvadora a todos os homens, educando-nos para que, renegadas a impiedade e as paixões mundanas, vivamos no presente século, sensata, justa e piedosamente” (2 Timóteo 2:11,12). Essa é a resposta final ao antinomianismo: a graça estabelece a lei.
Uma variante do recuo antinomiano em relação à lei é a reivindicação de que os crentes não têm qualquer necessidade ou dever de regularem suas vidas pela lei, visto que seus recursos em Cristo são suficientes para guiá-los. Assim, Lutero asseverou que a fé cristã naturalmente produz boas obras (ou seja, amor e serviço), por meio do impulso instantâneo. J. A. T. Robinson afirmou que o amor cristão traz embutida uma bússola moral, de tal modo que não precisa firmar-se sobre regras bíblicas, nem precisa necessariamente ser guiado por elas. Muitos têm falado sobre isto como se o impulso do Espírito, na consciência do crente, suplantasse inteiramente as instruções da lei.
Aqueles que tomam essa posição, frisam corretamente a espontaneidade interior da vida cristã genuína, bem como a criatividade ética do amor. Porém, eles separam o que Deus uniu, a saber, a obra do Espírito Santo em ensinar e a Palavra pela qual Ele o faz. O Espírito continua a gravar a lei de Deus em nossos corações durante toda nossa vida, instruindo-nos pelas Escrituras nos padrões de Deus e fazendo-nos julgar quão distante temos ficado da perfeição moral e espiritual que esses padrões incorporam. Em suas cartas, Paulo não só nos ensina acerca de Cristo e do Espírito Santo, mas, normalmente na segunda metade delas exercita crentes nos princípios éticos — isto é, na lei, conforme ela se aplica aos crentes (cf. Romanos 12-15; Gálatas 5-6; Efésios 4:17-6:9; Colossenses 3:1-4:6). Seria arriscado tentar ser mais sábio do que Paulo, em nossa maneira de ensinar a vida cristã.
Se nos lembrarmos que, como crentes, servimos a Deus não para adquirirmos a vida, mas por já termos a vida, como seus filhos e filhas já justificados e adotados, então não cairemos no legalismo que esses mestres temem; antes, veremos a lei de Deus como o código de normas da família e nos regozijaremos em procurar vivê-la desta forma, agradando ao nosso Pai celeste, que nos amou e nos salvou.
Paulo escreveu: “Porque pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós, é dom de Deus. Não de obras para que ninguém se glorie. Pois somos feitura dEle, criados em Cristo Jesus para boas obras, as quais Deus de antemão preparou para que andássemos nelas” (Efésios 2:8-10). A doutrina paulina da graça gratuita e soberana tanto humilha a soberba dos legalistas, que são justos aos seus próprios olhos, como condena a lassidão preguiçosa e irresponsável dos antinomianos. Entendido corretamente, esse ensino gera uma jubilosa segurança e uma incansável energia no serviço de nosso Salvador. Foi dito com muita propriedade que, no Novo Testamento, a doutrina é a graça, a ética é a gratidão (Romanos 12:1); e nosso Senhor ensinou que a pessoa que mais ama é aquela que é mais consciente do amor por ela demonstrado (Lucas 7:40ss.). O mundo veria muito mais piedade prática do que está vendo, se os crentes de nossos dias conhecessem mais acerca da graça de Deus.
Fonte: Extraído do livro “Vocábulos de Deus” de J. I. Packer, publicado no Brasil pela Editora Fiel.
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